quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A técnica intertextual do Cut-Up em Naked Lunch de William Burroughs por Flávia Andrea Rodrigues Benfatti (UNICERES)


A técnica intertextual do Cut-Up em "Naked Lunch" de William Burroughs
por Flávia Andrea Rodrigues Benfatti* (UNICERES)


Resumo:
Esta comunicação visa apresentar a técnica intertextual, o cut-up,
utilizada por William Burroughs na obra Naked Lunch (1959). Para tanto, foi
utilizado como arcabouço teórico Mikhail Bakhtin e Laurent Jenny para embasar o
construto literário do autor
.


I

O conceito de dialogismo desenvolvido por Bakhtin é apontado por Barros (1994) como imprescindível para a formação de sentido de um texto. Em se tratando da interação verbal, na relação dialógica “eu-tu”, o sujeito se descentraliza, sendo substituído por vozes sociais e históricas. A autora ainda acrescenta que, não sendo mais o foco do discurso centrado no “eu” ou no “tu”, a interlocução passa para o espaço criado entre ambos, o texto.
O segundo aspecto do dialogismo discutido pela autora se refere às vozes oriundas de diversos textos que se instauram no interior de cada um e o definem. Tais vozes foram chamadas por Bakhtin de polifonia. Essas vozes criam um diálogo intertextual com outros textos existentes. Esse caráter dinâmico do texto literário permite um encontro de superfícies
textuais que faz com que ele não seja um ponto fixo. Nesse sentido, Bakhtin, partindo de um
estudo sobre a obra de Dostoiévski, leu o texto literário dentro de seu contexto, situando-o na
história e na sociedade. Dessa forma, há uma interação entre o “eu” e o “outro” dentro de um texto, isto é, ocorre uma relação dialógica. Segundo o teórico:

[...] o diálogo não é o limiar da ação, mas a própria a ação. Tampouco é um
meio de revelação, de descobrimento do caráter como que já acabado do
homem. Não, aqui o homem não apenas se revela exteriormente como se
torna, pela primeira vez, aquilo que é, repetimos, não só para os outros mas
também para si mesmo. Ser significa comunicar-se pelo diálogo. Quando
termina o diálogo, tudo termina. Daí o diálogo, em essência não pode nem
dever terminar. (1981, p. 222-223)

Ainda, segundo Barros, há de se fazer uma distinção entre dialogismo e polifonia, embora, para ela, ambos sejam usados, muitas vezes, como sinônimos. A autora discute que a polifonia ocorre dentro de um texto dialógico, ou seja, há nele o embate de muitas vozes sociais. Por outro lado, esse efeito polifônico é percebido se as vozes deixam ser ouvidas, pois, do contrário, elas se ocultarão em uma única voz monofônica. Esta, por sua vez, mostra-se camuflada, quando por procedimentos discursivos, abafam as múltiplas vozes que compõem todo texto. Isso se dá quando há um discurso autoritário o qual busca externar uma verdade única.
Para a autora, Bakhtin estabelece o princípio arquitetônico da prosa romanesca, quando reconhece que o conceito de vozes se encontra dentro da linguagem literária e que somente por meio dessa linguagem é possível observar discursos obscurecidos de outras fontes diversas. Nesse sentido, há uma tensão dialética entre esses discursos plurais dentro de um texto e não uma busca pela síntese do conjunto.
Quando Julia Kristeva (1974) afirma que todo texto é absorção e transformação de outro texto, compartilha da idéia de Bakhtin de que a língua é concreta (não abstrata) e apresenta uma forma plurilíngüe ao absorver vários textos em um. O procedimento de somatória de outros textos não impede que o texto em formação elabore sua própria significação e possua sua própria maneira de ser. Pode-se inferir, então, que os textos se completam e se inter-relacionam, seja em uma relação contratual e polêmica.
Dentro desse cenário, William Burroughs em Naked Lunch (1957) permite que observemos essa pluralidade de vozes que dialogam especificamente com os meios de comunicação de massa, como veremos adiante.
Jenny (1979) abre a sua discussão do processo intertextual com a inferência de que em “face aos modelos arquetípicos, a obra literária entra sempre numa relação de realização, transformação ou transgressão” sendo essa a relação que a define. Isso significa que os arquétipos, sendo uma linguagem primária, dão vazão a uma linguagem secundária que é a literatura. Nesse sentido, a literatura se apropria desses arquétipos transformando-os, transgredindo-os, dando a eles uma nova roupagem.
Jenny apresenta vários tipos de construções intertextuais. Em primeiro lugar, trata da intertextualidade implícita, ou seja, a obra literária remete implicitamente, do ponto de vista de sua gênese, a outros textos, e a intertextualidade explícita é aquela que deixa transparecer
sua relação com outro texto, como é o caso da paródia, da citação, do plágio.
A intertextualidade poética é explicada pelo autor por dois eixos históricos: um que procura a intertextualidade na história do sujeito criador; e outro que procura a intertextualidade na evolução da memória literária de uma determinada época enfatizando a influência da tecnologia da informação. A idéia dos media desenvolvida por McLuhan (1967) é a de que existe uma memória gerada pelos media a partir de diferentes épocas e que constitui uma resposta satisfatória à questão intertextual. Nesse segundo eixo, encaixa-se a técnica do cut-up desenvolvida por Burroughs, pois é o medium audiovisual que determina a sua obra. No entanto, Jenny aponta para um certo reducionismo ao se considerar a intertextualidade como apenas reflexo dos media. O que William Burroughs faz é utilizar-se dos media para mostrar os mecanismos de poder exercidos por eles fazendo-nos crer que sua visão intertextual está relacionada a uma crítica à parafernália de informações da sociedade do consumo. Como afirma Jenny, “o olhar intertextual é então um olhar crítico: é isso que o define”(p.10).
Ainda segundo o teórico, o conceito de crítica formal vê a obra de arte por si mesma (arte pela arte) esquecendo que o texto está inserido em um momento histórico. A crítica idealista procura explicar a obra literária por meio da biografia do autor e de outras disciplinas, porém, esquecem-se de seu caráter imanente. Para resolver o impasse intertextual, o teórico Tynianov (apud JENNY, 1979) propõe que o texto literário ora se relaciona com textos pré-existentes, ora com outros sistemas de significação não-literários, como as linguagens orais. No entanto, o autor não vê uma possível junção dos dois em uma mesma obra. Kristeva, por sua vez, amplia a visão de Tynianov alegando que um texto é formado por meio de uma transposição literária quer se trate de “obras literárias, de linguagens orais, de sistemas simbólicos sociais ou inconscientes” (JENNY, 1979, p.13). Para Kristeva, a literatura é uma representação de várias sistemas sígnicos que coexistem ao mesmo tempo.
Com relação a Naked Lunch de Burroughs, pode-se inferir que o caráter biográfico deve ser levado em consideração para a análise textual já que a obra se insere dentro das narrativas autobiográficas, mas isso não significa que os elementos internos da obra não possuam sua independência. De acordo com Bakhtin,

[...] não existe um limite acentuado e de princípio entre a autobiografia e a
biografia [...] ser autobiografia, ou seja, do ponto de vista de uma eventual
coincidência pessoal entre personagem e o autor nela, ou melhor (porque
coincidência entre personagem e autor é contradicto in adjecto, o autor é
elemento todo artístico e como tal não pode coincidir dentro desse todo com
a personagem, outro elemento seu. A coincidência pessoal “na vida” da
pessoa de quem se fala com a pessoa que fala não elimina a diferença entre
esses elementos no interior do todo artístico. (2003, p.138-139)

No entanto, esses dados se mesclam aos aspectos intertextuais produzidos pelos media bem como ao caráter imanente, peculiar da criação artística do escritor. Além disso, há, na obra do autor, uma confluência de vários sistemas sígnicos, como apontado por Kristeva, pois Burroughs apropriou-se não apenas dos media (cinema, jornal, TV) como também de frases orais produzidas nas ruas (as quais ele ora gravava em um gravador de mão, ora reproduzia de cabeça) e imagens e frases em outdoors.
Jenny (1979) também trabalhou com os conceitos de intertextualidade fraca, que segundo ele, diz respeito à imagem de um texto utilizada em outro texto, entretanto sem correlação entre os contextos; e intertextualidade por interversão, ou seja, uma contradição entre discursos trocados. Como exemplo do primeiro, o autor cita a cena do coveiro em Hamlet, de Shakespeare e em Cantos de Maldoror, de Lautréamont. Enquanto na cena do coveiro, em Hamlet, a personagem homônima da peça se encontra sentada próxima à cova de seu pai, na mesma cena em Cantos de Maldoror, há uma imagem de um Pelicano que “dá o peito a devorar aos filhos” (p.14). Portanto, não há uma correlação de contextos entre as duas obras. Quanto ao segundo tipo de intertextualidade – por interversão – pode-se citar como exemplo o conto “A Cartomante” (1974) de Machado de Assis e “As Cartas não Mentem Jamais” (1992) de Sérgio Sant’ana. A cartomante no conto de Sant’ana, diferentemente da cartomante de Machado, é dissimulada, finge um saber e um poder que não possui. Ela age ao nível do “parecer”, e não do “ser”.
Burroughs utilizou o segundo tipo de intertextualidade quando, por exemplo, em uma passagem em que apresenta o senhor A.J. e pede a atenção dos convidados de uma festa. Usa-se, em situações formais, introduzir a frase: “senhoras e senhores...”. O que o autor fez foi transgredir esse tipo de formalidade por meio de uma linguagem chocante a fim de escancarar
as concepções puritanas e os tabus sexuais da sociedade norte-americana:

A.J. turns to the guests. “Cunts, pricks, fence stradlers, tonight I give you –
that international-known impresario of blue movies and short-wave TV, the
one, the only, The Great Slashtubitch!” (p. 109)

Como já foi dito antes, Kristeva atesta que qualquer sistema significante pode passar de um para outro independentemente de ser literário ou não-literário. A autora trata da transposição de texto para texto. Jenny, por sua vez, assume que o termo intertextualidade seria inadequado para falar de literatura. Prefere, então, tratar de uma relação que se estabelece entre dois sistemas de significantes abertos, e não entre dois textos. Para o autor, o
trabalho intertextual resume-se a uma transposição do signo lingüístico para o signo literário,
já que o signo literário rompe com o referente do mundo real, ampliando a natureza da palavra literária. O autor ainda acrescenta que a palavra intertextual não pode ser analisada dentro de um discurso monolítico porque ela é remissão. No texto literário, o que é significante vira significado e vice-versa. Como exemplo, temos a sentença de uma canção de Chico César na qual ele canta: “O ser tão vai vir a amar”, a pronúncia dessa combinação significante nos remete ao que já conhecemos – a música “Sobradinho” de Sá e Guarabira: “O sertão vai virar mar”. Existe, então, neste contexto, uma transposição de significante para significado, o que é
intitulado trocadilho.
Nesse sentido, Burroughs trata de uma explosão virótica que não se refere literalmente à proliferação de um vírus no sentido biológico, mas dos males da sociedade que se instauram no indivíduo e se proliferam:

The broken image of Man moves in minute by minute and cell by
cell…Poverty, hatred, war, police-criminals, bureaucracy, insanity, all
symptoms of The Human Virus. (p. 191)

A intertextualidade também é criada por meio de recursos como o anagrama. Em Naked Lunch, Burroughs utiliza-se de anagramas como efeito estilístico. No trecho a seguir, o escritor menciona as iniciais A.J. que pode ser uma referência, embora com as letras invertidas, a Jackson Anderson, um piloto de asa delta com o qual teve relações sexuais:

I was working for na outfit known as Islam Inc., financed by A.J., the
notoruius Merchant of Sex, who scandalized international society when he
appeared at the Duc de Ventre’s ball as a walking penis covered by a huge
condom emblazoned with the A.J. motto “They Shall Not Pass.” (p. 167)

J
enny (1979) ainda comenta que o processo intertextual gera a desintegração do narrativo, a desestruturação de sua ordem como no caso de textos surrealistas e como a própria técnica do cut-up de Burroughs. O teórico aponta que “a narrativa esvai-se, a sintaxe explode, o próprio significante abre brechas, a partir do momento em que a montagem dos textos deixa de se reger por um desejo de salvaguardar” (p.28). Nesse sentido, Burroughs rompe com a sintaxe tradicional dando vazão às mais variadas combinações. Assim como os textos surrealistas nos quais a ausência de lógica predomina no campo narrativo, pode-se inferir que a obra de Burroughs em questão se assemelha a tais textos, quando se trata de não apresentar lógica, embora haja coesão e coerência, como podemos constatar no trecho abaixo:

“I’ve got these racing dogs...pedigree grey-hounds....All sick with the
dysentery...tropical climate...the shits…you sabe shit?...My Whippets Are
Dying…” He screamed…. His eyes lit up with blue fire….The flame went
out…smell of burning metal…. “Administer with an eye dropper….” He
nodded out against the counter….The druggist took a tooth-pick out of his
mouth and looked at the end of it and shook his head…. (p.245)

Como conclusão, Jenny (1979) expõe que as ideologias intertextuais estão relacionadas com a intertextualidade como desvio cultural, ou seja, a quebra de barreiras; a intertextualidade como reativação do sentido, a fim de provocar uma reação no leitor e a intertextualidade como espelho dos sujeitos cujo objetivo é produzir uma visão diferente em cada ser além de ultrapassar as fronteiras do pensamento e ser absorvido socialmente.


II

Tratando mais de perto a técnica de composição literária intitulada cut-up, inaugurada por Burroughs, apresentaremos, a seguir, o seu precedente histórico e alguns exemplos de trechos comentados.
O precedente histórico dessa técnica data da década de 1920 quando Tristan Tzara ofereceu-se para criar um poema a partir de palavras retiradas aleatoriamente de um chapéu.
Na década de 1950, o pintor e escritor Brion Gysin desenvolveu o método do cut-up acidentalmente quando resolveu cobrir a superfície de uma mesa com jornais para protegê-la.
Isso feito, o artista passou a cortar jornais com uma lâmina e percebeu que as camadas cortadas ofereciam justaposições interessantes. Após essa descoberta, começou em seguida a reorganizar esses cortes de jornal que resultou no experimento inicial do cut-up. Ao comunicar ao amigo Burroughs o que havia acontecido, ambos então passaram a aprimorar a técnica, estendendo-a aos media impressos e gravações em áudio. O objetivo da dupla era tentar decodificar o conteúdo implícito do material coletado, ou seja, tentar decifrar o verdadeiro sentido de um texto. Mais tarde ambos publicaram o livro intitulado The Third Mind (1978) – uma coleção de escritas cut-ups e ensaios sobre a forma. Com isso, o cut-up surge como um estilo literário que tenta quebrar a linearidade da literatura comum.
O cut-up foi influenciado pela técnica do collage usado por artistas e fotógrafos. Gysin e Burroughs procuraram levar a espontaneidade do collage para a literatura.
O cut-up foi desenvolvido por Burroughs por meio de uma justaposição de trechos de textos coletados de diversas fontes, como a Bíblia, jornais, diálogos de filmes, gravações em áudio e outros, compõe a sua obra. Ele ordenava esses trechos e os reescrevia. Segundo o escritor, o método é simples: deve-se pegar uma página e cortá-la ao meio para que se obtenha quatro seções e, então, reorganizar as sessões misturando a seção um a quatro e a seção dois a três para se obter uma nova página. Às vezes se tem a mesma coisa, mas, às vezes, algo inusitado é formado. Isso pode ser feito com discursos políticos, com poemas de grandes escritores, como Shakespeare e Rimbaud. De fato, o interesse do escritor nesta técnica é a de sair do convencional e obter novos discursos, já que, segundo ele, as palavras perderam sentido durante anos de repetição. O autor, em uma entrevista concedida ao jornal Paranaense Nicolau (1973) afirmou que: “O passado é, em grande parte uma fabricação dos vivos. E a história é simplesmente um montão de coisas fabricadas. Não existem coisas de verdade”. Ainda segundo o autor, o cut-up é uma experiência que pode ser usada por qualquer um. Ele
atesta que os melhores textos escritos foram feitos quase que acidentalmente por escritores antes que o método do cut-up fosse explicitado.
Na mesma entrevista, o escritor explica:

O cut-up consiste numa introdução deliberada das coisas pela porta dos
fundos. Vamos supor que você está olhando um cara atravessando a rua
com um maço de flores e uma bicicleta. Um carro o atropela, você o vê
voando à sua frente enquanto uma outra pessoa vem em sua direção
gritando ‘táxi’. Então você olha para o neon da loja da frente e vê escrito:
FLORICULTURA PARAÍSO. Isso seria um cut-up. A vida é um cut-up. O
que é a vida senão uma seqüência mais ou menos ilógica de acontecimentos
que não se prestam a nenhum segundo para fazer sentido?

A cada vez que se olha pela janela ou que se anda pela rua, a consciência
descreve círculos, vai de frente para trás e vice-versa [...] uma das tarefas da
arte é chegar o mais perto possível do mecanismo da percepção. (1973)**

A técnica exerceu não apenas influência literária, mas musical e comportamental. O músico, escritor e artista Gênesis P-Orridge (1950) utilizou o método nas suas criações musicais e artísticas. No início dos anos 1970, o músico David Bowie utilizou-se do cut-up para criar suas músicas. Na década de 1990, Kurt Cobain, do Nirvana, também utilizou o cut-up em suas canções. O grupo anarquista, anti-capitalista e anti-autoritário CrimethInc (EUA, 2000) publicou um livro intitulado Receitas para Desastre no qual propõe performance de atividades de rotina socialmente aceitas com o intuito de torná-las criativas e divertidas. A intenção é que a pessoa faça performances por um longo tempo até se desgastar e mudar de comportamento.
Naked Lunch é um relato sem censura de sua experiência como um viciado, cuja vida já não lhe pertence, não sendo mais guiada pelas sensações ou emoções. Nicolau Sevcenko, no prefácio à obra, sintetiza:

Comprimido entre a repressão policial e a ganância espúria do traficante, o
viciado é a presa universal, o pária por excelência da sociedade, vista de
cima para baixo ou de baixo para cima. Quanto a si mesmo, ele é a presa da
droga, reduzido à compulsão do seu vício. (1959, p.4)

O romance, constituído de episódios visionários, revela a desilusão do protagonista com relação ao vício em drogas e que luta contra a sociedade tecnológica detentora de poder e auto-destrutiva. A experiência do viciado conduz à percepção de que o corpo é uma presa biológica e a sociedade é controlada por “fanáticos” que usam a necessidade do corpo para satisfazer sua obsessão pelo poder.
O texto é construído sem qualquer linearidade discursiva, mas de forma fragmentária, na qual imagens, relatos e representações do mundo (que parece real) mesclam-se à sede, angústia e ao medo causados pela droga, num ritmo louco e repugnante. Os capítulos, colocados em ordem aleatória, apontam para um estilo de fluxo de consciência. Neles, Burroughs usa uma vasta gama de recursos literários tais como noticiários, propagandas, trechos de entrevistas que, justapostos, formam o cut-up. Nesse construto narrativo, Burroughs levanta questionamentos com relação ao poder manipulatório dos media e dos detentores do Poder na sociedade capitalista que pretendem criar cidadãos manipulados por eles, idiotizados e destituídos de individualidade:

Desintoxication Notes. Paranoia of early withdrawal.... Everything looks
blue....Flesh dead, doughy, toneless
Withdrawal Nightnares. A mirror –lined café. Empty….Waiting for
something….A man appears in a side door….A slight, short Arab dressed in
a brown jellaba with grey beard and grey face…There is a pitcher of boiling
acid in my hand….Seized by a convulsion of urgency, I throw it in his
face….[…] (p.75)

Em meio a todos os recortes feitos por Burroughs, a narrativa traz críticas à sociedade capitalista do consumo, como no trecho abaixo, em que o narrador, em um desabafo exprime o tédio americano que ele não consegue explicar de onde vem. Talvez esse tédio fosse o reflexo da futilidade e do conformismo da sociedade afluente que estava diante dos olhos das pessoas, em cada esquina, mas que não trazia nenhum alívio para as aflições internas de cada um.
Embora, após questionar a procedência do tédio, o narrador afirma que ele não está relacionado ao colorido dos banquinhos do bar, ou à luz de néon, esses traços podem indicar ironia, significando exatamente o contrário, já que o narrador atesta que o vício aumenta com
o tédio e é um dos males da sociedade de consumo:

But there is no drag like U.S.drag. You can’t see it, you don’t know where it
comes from. Take one of those cocktail lounges at the end of a subdivision
street – every block of houses has its own bar and drugstore and market and
liquorstore. You walk in and it hits you. But where does it come from?
Not the bartender, not the customers, nor the cream-colored plastic rounding
the bar stools, nor the dim neon. Not even the TV. (p.30)

Burroughs utiliza as imagens provenientes dessa sociedade como forma de sátira social.
Em vários trechos, o autor também trabalha com a metáfora da decadência decorrente de sua vida no submundo das drogas e, por conseguinte, de sua aproximação com os mais baixos degraus da sociedade. A metáfora sugere uma deterioração do ambiente, causada pelo consumo sem limites e não consciente de suas conseqüências para a natureza e para o próprio
ser humano. No excerto a seguir é nítido o uso de imagens justapostas que, novamente, culminam em uma crítica à sociedade de consumo:

[...] smell of chilli houses and dank overcoats and atrophied testicles...[...]
walking in a rubbish heap to the sky…scattered gasoline fires…smoke
hangs black and solid as excremente in the motionless air;;;smudging the
white film of noon heat…[…]
A heaving sea of air hammers in the purple brown dusk tainted with rotten
metal smell of sewer gas…young worker faces vibrating out of focus in
yellow halos of carbide lanterns…broken pipes exposed…[…] (p.259-261)

No trecho a seguir, o autor, por meio de uma descrição coloquial do ato sexual, sobrepõe imagens da sociedade de consumo com imagens alucinantes de um prazer mórbido decorrente de seu fascínio pelo lado perverso e sórdido da natureza humana em decorrência de seu protesto contra o olhar negligente da sociedade para com as minorias, sejam elas étnicas, sociais ou sexuais:

A train roar through him whistle blowing...boat whistle, foghorn, sky rocket
burst over oily lagoons…penny arcade open into a maze of dirty
pictures…ceremonial cannon boom in the harbour…a scream shoots down
a white hospital corridor…out along a wide dusty street between palm trees,
whistles out across the desert like a bullet (vulture wings husk in the dry
air), a thousand boys come at once in out-houses, bleak public school
toilets, attics, basements, treehouses, Ferris wheels, deserted houses,
limestone caves, rowboats, garages, barns, rubbly windy city outskirts
behind mud walls (smell of dried excrement) […] (p. 114)

Neste outro trecho tem-se uma profusão de descrições aparentemente desconexas que relatam o período de abstinência da droga vivido pelo protagonista:

Tentative half impressions that dissolve in light... pockets of rotten
ectoplasm swept out by an old junky coughing and spitting in the sick
morning…
Old violet brown photos that curl and crack like mud in the sun: Panama
City… Bill Gains putting down the paregoric con on a Chinese druggist.
(p.245)

Dessa forma, nota-se que, dos diversos caminhos do processo intertextual, o cut-up é um dos mais ousados pelo fato de agrupar, em um único texto, elementos literários e não-literários em uma seqüência narrativa ilógica.


. . .

Burroughs não apenas criticou o abuso da autoridade como também o incentivo ao consumo, esse último de forma enfática em Naked Lunch. O escritor vê o mundo como um grande centro comercial e burocrático, manipulado pelos detentores do poder. É nesse mundo material, onde até as pessoas transformam-se em objetos vendáveis: do drogado que se vende
ao vício, tornando-se presa fácil das autoridades, às pessoas em geral, que consomem de tudo,
poluindo o planeta e transformando-o em um grande aterro sanitário.
Na obra de Burroughs, pode-se encontrar intervenções de várias áreas, como a pintura, o cinema, a cultura pop, a filosofia, a antropologia e a psicanálise, o que nos apresenta o caráter intertextual e polivocal desta literatura levando o leitor a outras linguagens artísticas, e a um diálogo polifônico de imagens e idéias fragmentadas (técnica do cut-up).


Referências Bibliográficas
1] BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoéviski. Tradução de Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 1981.

2] ______. Estética da Criação Verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins
Fontes, 2003.

3] BARROS, Diana Pessoa de; FIORIN, José Luiz (Orgs.). Dialogismo, Polifonia,
Intertextualidade. São Paulo: EDUSP, 1994.

4] BURROUGHS, W. S. The Naked Lunch. Corgi Books: Great Britain, 1969.
5] JENNY, L. Intertextualidades. Coimbra: Almedina, 1979.
6] KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução de Léia Helena França Ferraz. São
Paulo: Perspectiva, 1974.

7] MCLUHAN, M. The Medium is the Message: An Inventory of effects. New York: Bantan
Books, 1967.



* - Instituto Ceres de Educação [E-mail: flaviabenfatti@terra.com.br]
** - O Jornal não apresenta paginação.

Fonte:
Encontro Regional da ABRALIC 2007
Literaturas, Artes, Saberes
23 a 25 de julho de 2007
USP – São Paulo, Brasil

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