segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Notas Sobre o Futurismo Literário por Mariarosaria Fabris


Notas Sobre o∗Futurismo Literário
Mariarosaria Fabris*

Versão ampliada da comunicação “Futurismo literário: da alegoria à poética da matéria”,
apresentada no simpósio “Modernidade, tradição e vanguardas literário-artísticas na época do
‘moderno inelutável’”, que integrou o IX Congresso Internacional da ABRALIC–Travessias, Porto
Alegre, UFRGS, 18-21 de julho de 2004.


.
.
RESUMO
A publicação de “Fundação e Manifesto do Futurismo” (Le Figaro, Paris, 20/2/1909) apresentava ao meio intelectual mundial o movimento criado por Marinetti, que abarcará quase todas as manifestações artísticas. Na literatura, as palavras em liberdade e as tavole parolibere
representaram uma fragmentação da estrutura lingüística da poesia, mas serão também a matéria prima para a construção de outras experiências literárias das vanguardas e das neovanguardas.




Com a publicação de “Fundação e Manifesto do Futurismo” em Le Figaro, a 20 de fevereiro de 1909, o movimento futurista era lançado em Paris. Como salienta Annateresa Fabris (1987, p. 57, 59), o fato de o Futurismo se anunciar por um manifesto não representava em si um dado novo do ponto de vista cultural, uma vez que todo movimento nascido na França desde o último quartel do século XIX havia proclamado seu surgimento dessa forma. Se, de um lado, não se tratava de um acontecimento culturalmente inédito, de outro, era indubitável que as teorias do Futurismo eram muito mais ousadas e inovadoras do que as de seus antecessores, por se valerem da provocação para se afirmar.
A escolha da Cidade-Luz para a apresentação oficial do Futurismo e sua veiculação num jornal como Le Figaro não foram gratuitas, pois vinham assegurar ao movimento uma repercussão no meio cultural italiano e
internacional muito maior do que a alcançada se este tivesse sido anunciado no país de origem. De fato, apesar do lançamento na França, pesquisas mais recentes assinalam que “Fundação e Manifesto do Futurismo” já havia sido divulgado alguns dias antes em dois periódicos napolitanos: na revista La Tavola Rotonda (14 de fevereiro), que o publicou na íntegra, e no jornal Il Giorno (16-17 de fevereiro), que reproduziu alguns de seus trechos (D’AMBROSIO, 1996, p. 125, 15).
Esse manifesto serviu de modelo para todos os outros que o Futurismo lançou, por seu duplo aspecto: ao mesmo tempo em que atestava a fundação do movimento, representava também a afirmação de uma poética, que se relacionava dialeticamente com a literatura que o havia antecedido. Annateresa Fabris (1987, p. 60-2) lembra que vários críticos viram em sua introdução uma viagem de iniciação comparável à empreendida por Dante Alighieri em A divina comédia, se bem que às avessas, pois, se para o poeta florentino a morte espiritual simbolizava a maneira encontrada pela razão para ensinar ao homem como superar a própria morte, para Marinetti conhecer a morte e transformá-la em companheira eterna era um modo de rechaçar a
razão. Isso seria atestado pelo emprego de figuras peculiares de linguagem: o automóvel era comparado com a “fera”, o “tubarão”; os futuristas, arrebatados pela “furiosa vassoura da loucura” e guiados pelo “faro”,
domesticavam a Morte e repudiavam a sabedoria. Os “cães de guarda” que vigiavam as “soleiras” das “casas” (metáfora dos que ainda defendiam a velha sensibilidade, as fórmulas artísticas desgastadas) eram esmagados; o homem novo, num gesto repentino e inesperado, para se descartar dos ideais dos passadistas, que Marinetti (1968) configurava como dois ciclistas “titubeantes”, dois raciocínios “persuasivos” e "contraditórios” ao mesmo tempo, saltava no fosso lamacento para renascer de suas águas. Renascia aberto psicologicamente ao universo da nova sensibilidade mecânica, e abandonava as velhas categorias mentais, lingüisticamente recorrentes em metáforas e imagens que ele repudiava.
A polêmica com o passado representava a afirmação das novas forças criadoras e isso se explicitava ao longo dos onze pontos programáticos, que constituem o manifesto propriamente dito, em que o estilo discursivo e
fortemente alegórico (ainda com laivos decadentes e simbolistas) do prólogo era substituído por um tom declamatório, peremptório, concitador na exposição das crenças e do programa de ação dos futuristas.
Do ponto de vista literário, os manifestos muitas vezes constituíram o reverso da medalha, pois, para expor suas concepções, os futuristas raramente recorreram às formas sintéticas de expressão preconizadas nesses textos, as quais se limitarão às construções poéticas. Nas outras áreas de expressão e comunicação continuaram a respeitar a sintaxe e a pontuação, quando não se serviram de uma retórica desgastada e de imagens tradicionais.
O manifesto de fundação, com seus dois níveis de escrita, remete-nos, de um lado, ao Marinetti pré-futurista, promotor do verso livre; de outro, aponta para o que será a poética futurista, explicitada, no caso da literatura, nos programas dos manifestos técnicos.
Tentar estabelecer datas e fases para um movimento é sempre uma tarefa ingrata, pois esbarramos em critérios diferentes, conforme o autor que consultamos. O Futurismo literário também não escapa dessa regra; se pegarmos somente três autores (escolhidos dentre os mais importantes estudiosos do movimento), veremos que há algumas divergências. Enquanto Luciano De Maria (1973) fala em dois momentos – o do verso livre, entre 1909 e 1913, e o das palavras em liberdade, de 1914 a 1944 –, Mario Verdone (1986) e
Enrico Falqui (1959) falam em três, pois acrescentam o das tavole parolibere [composições de palavras em liberdade] e o da aeropoesia, respectivamente. Verdone antecipa para 1890, com Gian Pietro Lucini (quando não para 1811, com Ugo Foscolo) o nascimento do verso livre, e, embora reconheça que sua difusão mais ampla se deu entre 1909 e 1914, encontra ecos até 1937; quanto ao momento das palavras em liberdade, este se estenderia de 1914 a 1919, mas haveria antecedentes em 1912 e epígonos até 1940.
Escolhemos a datação estabelecida por De Maria pelos motivos arrolados a seguir:

1. Apesar de já em 1905 ter surgido a revista Poesia, divulgadora do verso livre, foi a partir de 1909 que o Futurismo se afirmou (1) e, se quisermos ser ainda mais radicais, foi só em 1912, com a publicação do Manifesto técnico da literatura futurista”, que se pode falar de literatura futurista e, nesse caso, ela só corresponderia às palavras em liberdade, sendo a fase do verso livre um estágio preparatório. Ao considerarmos como textos literários também os manifestos – malgrado a literatura futurista seja mais marcada pela poesia –, então podemos tomar como data inicial o ano de 1909;
2. Embora as palavras em liberdade já estivessem explicitadas nesse primeiro manifesto técnico e um exemplo delas – Batalha Peso + Odor – tivesse aparecido nas “Respostas às objeções” (1912); embora tenham sido retomadas nos manifestos “Destruição da sintaxe Imaginação sem fios Palavras em liberdade” (1913) e “O esplendor geométrico e mecânico e a sensibilidade numérica” (1914), seu grande momento de afirmação deu-se a partir da publicação de Zang tumb tuuum (1914), de Filippo Tommaso Marinetti, em que a sucessão mecânica de substantivos e infinitivos de Batalha Peso + Odor era substituída por uma orquestração verbal mais variada e elástica;
3. Quanto à distinção entre palavras em liberdade, tavole parolibere e aeropoesia, pode-se dizer que elas constituem três momentos da nova poesia, três momentos em estrita interdependência. De fato, na própria concepção das palavras em liberdade já estavam contidas as tavole parolibere, só que nestas acabavam por predominar os ritmos figurativos. No que diz respeito à aeropoesia (que surge em 1931), esta nada mais era do que “uma versão mais elástica e ampliada das palavras em liberdade” (DE MARIA, 1973, p. XIX) e, em
relação às tavole parolibere, constituiu um retrocesso, pois as palavras voltavam a seguir um fluxo retilíneo. O texto, que havia se tornado mais visual, voltava a ser mais literário, mais retórico. Ademais, o próprio Marinetti (1968g), em 1937, em “A técnica da nova poesia”, caracterizava as tavole parolibere, as palavras em liberdade e as palavras em liberdade de aeropoesia como três tipos de parolibrismo.
Como De Maria, portanto, manteremos esses dois momentos: o do verso livre e o das palavras em liberdade, lembrando ainda que um não excluiu o outro, pois, mesmo na fase das palavras em liberdade, alguns poetas
continuaram a escrever em versos livres (2).

Embora a fase do verso livre só tenha durado quatro anos (1909-1913), para Marinetti a polêmica já havia iniciado nas páginas da revista Poesia, lançada em fevereiro de 1905 em Milão, junto com Sem Benelli e Vitaliano Ponti.
Poesia, como observa Annateresa Fabris (1987, p. 48-54), propunha-se a publicar versos inéditos e renovar as formas de expressão lírica, mas, quando de seu lançamento, era colocada sob a égide de um poeta consagrado, Giosuè Carducci, apresentava uma capa de inspiração simbolista e seu editorial havia sido redigido numa linguagem decadente-nietzschiana. Apesar dessa premissa a revista não seguia uma linha rígida, pois publicava lado a lado poetas franceses simbolistas e vers-libristes (praticamente desconhecidos na Itália) e novas vozes poéticas italianas, como Aldo Palazzeschi, Corrado Govoni, Enrico Cavacchioli, Paolo Buzzi, Federico De Maria, associados a poetas tradicionais, dentre os quais Giuseppe Lipparini, e a nomes consagrados, como Gabriele D’Annunzio, Giovanni Pascoli e Ada Negri, além do já citado Giosuè Carducci.
O espírito de Poesia era internacionalista e, entre seus colaboradores, constavam vários autores que estavam na base da formação literária de Marinetti: Paul Adam, Emile Verhaeren, Alfred Jarry, os integrantes da Abadia de Créteil, Catulle Mendès, Comtesse de Noailles, Henri de Régnier, Paul Fort, Francis Jammes, Jules Laforgue, Jean Moréas, Paul Claudel, além de Gustave Kahn (divulgador do verso livre na França, ao lado de Marie Krysinska).
A revista Poesia podia ser caracterizada como uma grande antologia desordenada e caótica, que promovia não só a divulgação da produção lírica (na qual, raras vezes, se concretizou o interesse pela modernidade e seus símbolos, em obras como “À l’automobile”, de Marinetti; “L’artigliere meccanico”, de Mario Morasso; “Lyrisme militariste”, de Jarry), como também concursos e enquetes, destacando-se, dentre estas, a do verso livre. A “Prima inchiesta internazionale sul verso libero” – que, iniciada em 1907, se prolongou até o ano seguinte – nasceu do encontro entre Marinetti e Lucini, o qual, desde o fim do século XIX, estava elaborando uma visão nacional da poesia simbolista, operação que acontecia na Itália quando na França o Simbolismo já iniciava seu declínio.
Com a enquete, instaurava-se, no âmbito da revista, o único debate de verdade, em que se envolveu também Carlos Magalhães de Azeredo, o qual declarou que no Brasil os “versos bárbaros” – expressão que preferia a “verso livre” – haviam sido acolhidos com simpatia, mas sem unanimidade (julho-setembro de 1906). Poeta pós-parnasiano que queria aperfeiçoar os “metros bárbaros” de Carducci, Magalhães de Azeredo teve duas de suas composições publicadas por Poesia: “Canção do nauta seduzido” (fevereiro-maio de 1907) e “Sobre uma ânfora de vinho grego” (outubro de 1908).
Na discussão sobre o verso livre, enfrentavam-se dois grupos: os franceses, quase todos favoráveis, a começar por Kahn, e os italianos, quase todos contrários, com exceção de poucos: Buzzi, De Maria e Lucini. Das quarenta e cinco respostas se deduz que o tema, o qual não era uma novidade para a França, na Itália constituía um elemento de ruptura com a tradição.
Se a prioridade da experiência vers-libriste na Itália cabe a Gian Pietro Lucini – que, em 1898, publicava Drammi delle maschere, em 1908, Il verso libero e, em 1909, Revolverate (com “Prefácio futurista” de Marinetti) –, a divulgação polêmica em escala nacional cabe, sem dúvida, à ação da revista Poesia.
A destruição do soneto, do hendecassílabo, do terceto, a absoluta liberdade de acentuação, as estrofes de tamanhos imprevistos e diferentes, o novo ritmo, os novos efeitos fônicos eram algumas das características do verso livre. Entre os melhores exemplos de poemas em verso livre lembramos: Aeroplani (1909), de Paolo Buzzi; L’incendiario (1910), de Aldo Palazzeschi; Poesie elettriche (1911), de Corrado Govoni; Il canto dei motori (1912), de Luciano Folgore, e Cavalcando il sole (1914), de Enrico Cavacchioli.
A renovação representada pelo verso livre, entretanto, não bastava; de fato, além do prefácio da obra de Lucini, Marinetti (1968b) só fez referências explícitas a ele em “Discurso aos triestinos” (1910) e em "Manifesto dos dramaturgos futuristas” (1911). No primeiro manifesto, como vimos, havia uma referência às temáticas futuristas, mas não às técnicas, uma vez que neste a ordem sintática das palavras era respeitada e a corrente da emoção lírica era aprisionada pela sintaxe; por isso era preciso libertar as palavras dos fios condutores que as mantinham ligadas, “fazer explodir as pontes das coisas já ditas”, “destruir os trilhos do verso”, era necessário que a essência da matéria aflorasse, para poder adentrar o Novo e o Futuro. Desse modo, a partir de 1912, Marinetti começava a propor a teoria das palavras em liberdade, numa tentativa de superação das técnicas literárias anteriores.
Destruída a poética do passado, por meio de uma subversão que não era só gramatical ou estilística, mas principalmente psicológica, porque era o reflexo de uma nova sensibilidade, estava aberto o caminho para a construção da poesia moderna.
A teoria das palavras em liberdade foi elaborada, como já dissemos, nos três manifestos “técnicos”, surgidos entre 1912 e 1914, que era também o período de gestação de Zang tumb tuuum, o que vem provar que teoria e práxis se desenvolviam paralelamente. Pela análise dos três manifestos, podemos arrolar as seguintes características das palavras em liberdade:

01) destruição da sintaxe;
02) emprego do verbo no infinitivo(3);
03) uso do adjetivo-semáforo ou adjetivo-farol ou adjetivo-atmosfera;
04) criação de um duplo para cada substantivo;
05) abolição da pontuação;
06) expansão das ligações analógicas;
07) eliminação das categorias de imagens;
08) disposição caótica na orquestração das imagens;
09) destruição do eu (subjetivismo) na literatura, substituído pela
10) obsessão lírica da matéria, cuja essência seria captada por meio da
11) introdução do rumor, do peso e do odor dos objetos na literatura;
12) exaltação do feio na literatura.

Muitas dessas características, como bem lembra Luciano De Maria (1986), já estavam presentes na literatura francesa: Victor Hugo, Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud e Stéphane Mallarmé eram alguns dos modelos. A originalidade de Marinetti consistiu em ter aglutinado esses elementos dispersos, transformando-os numa linguagem própria.
O cerne do manifesto de 1912, “Manifesto técnico da literatura futurista” (MARINETTI, 1968e), era o ataque ao psicologismo na literatura, a negação do subjetivismo dos românticos e dos simbolistas, a destruição do eu obsessivo, que levava a atribuir paixões e atribulações próprias do homem a outros seres animados e inanimados. Depois da “simultaneidade dos estados d’alma”, proclamada pelos pintores futuristas em fevereiro de 1912 (“Prefácio do catálogo das exposições de Paris, Londres, Berlim, Bruxelas, Munique,
Hamburgo, Viena etc.”, assinado por Umberto Boccioni, Carlo Carrà, Luigi Russolo, Giacomo Balla e Gino Severini), a subjetividade, que parecia completamente eliminada das teorizações marinettianas, seria recuperada. No manifesto de 1913, “Destruição da sintaxe Imaginação sem fios Palavras em liberdade”, Marinetti (1968d) começava a falar de “consciências múltiplas e simultâneas num mesmo indivíduo”, apropriando-se da simultaneidade, “palavra mágica” – como a define De Maria (1969, p. XXIX) – descoberta pelos pintores. A aceitação do conceito de simultaneidade lírica – ou “lirismo multilíneo”, para usarmos a expressão de Marinetti – representou um importante passo adiante em relação à teoria enunciada no manifesto de 1912: o objetivismo absoluto era substituído pelo subjetivismo relativo, que permitia
a coexistência de vários pontos de vista. Subjetivismo confirmado em 1914, no terceiro manifesto técnico, “O esplendor geométrico e mecânico e a sensibilidade numérica”, quando Marinetti (1968f) propôs que se alcançasse uma “perspectiva emocional multiforme” através das palavras em liberdade e pelo repúdio da sintaxe, inimiga da emoção.
Os exemplos mais significativos de palavras em liberdade são do próprio Marinetti: Zang tumb tuuum (1914), mas, já antes, Batalha Peso + Odor (1912) e Adrinopla cerco orquestração (publicado em Lacerba, 15 mar. 1913), além de várias “colagens tipográficas”, em que o autor antecipava a poesia visual ou concreta, reunidas em 1919 em Les mots en liberté futuristes, e do “romance explosivo” Otto anime in una bomba (1919).
Zang tumb tuuum pode ser considerado a melhor realização prática dos conceitos teóricos formulados por Marinetti entre 1912 e 1914. A correspondência entre a poética, contida nos três manifestos técnicos, e a
poesia, expressa nessa obra, era praticamente perfeita: embora o resultado final deixasse um pouco a desejar, nas intenções formais os preceitos teóricos haviam sido bem aplicados. A harmonia do estilo era substituída por uma escrita dinâmica que se valia de várias técnicas:

1. Destruição da sintaxe, pois as palavras apareciam soltas, não mais ligadas pelos fios da lógica gramatical. Não havendo mais esse intermediário, o leitor era atraído para dentro do texto (como nas obras de Mallarmé);

2. Verbos no infinitivo: a descrição da batalha tornava-se mais incisiva e direta, com o emprego de poucos verbos no infinitivo (que é uma das formas nominais do verbo). Nesse tipo de enunciado mais sintético, a expressividade provinha dos substantivos e dos adjetivos, que se manifestavam com maior força realista. Conseqüentemente, alcançava-se a destruição do subjetivismo, seguindo as pegadas da tradição poética francesa, principalmente de Baudelaire;

3. Abolição da pontuação: o tamanho variável dos espaços em branco (como em Mallarmé) indicava ao leitor as pausas da intuição. A pontuação podia ser substituída também por símbolos matemáticos;

4. Onomatopéias e expansão de vogais e consoantes: Marinetti, no entanto, nem sempre confiava no valor do rumor da matéria em movimento e decifrava as onomatopéias para o leitor, entre parênteses;

5. Revolução tipográfica, graças ao uso de corpos diferentes;

6. Adjetivo-farol, o qual, com a eliminação do advérbio e do adjetivo comum, lançava sua luz sobre as palavras circunstantes;

7. Ligações analógicas entre as palavras, o que permitia gradações de analogias cada vez mais amplas, uma maior orquestração das imagens e uma fusão de sentimentos e sensações (visuais, olfativas, auditivas, táteis).

A matéria não estava mais sujeita aos estados d’alma do poeta, mas ganhava uma força própria. Não existiam mais as barreiras, as névoas, as cortinas do Simbolismo, havia o contato direto com a realidade física.
Entrementes, era um realismo que, estranhamente, se construía, como vimos, através de sensações. Isso no que diz respeito ao estilo. Quanto ao conteúdo, a guerra (para dentro da qual o leitor era arrastado) era apresentada como uma festa, um espetáculo grandioso e, paradoxalmente, como afirmação da vida.
A leitura de Zang tumb tuuum não é fácil, pois a ausência de uma sintaxe organizada a dificulta muito. Além disso, nem sempre é possível reconstruir a rede de analogias pensadas por Marinetti. Quando apresentava essa obra, o autor contornava as dificuldades propondo uma interpretação física em que, para espalhar as palavras em liberdade, o declamador, pela movimentação, fizesse de seu corpo um instrumento no meio de outros instrumentos: o rosto e a voz deviam ser desumanizados e a gesticulação geométrica. O dinamismo desse novo tipo de declamação tornaria o espectador participativo, arrancando-o da atitude contemplativa, como preconizado em “A declamação dinâmica e sinóptica”, em 1916 (MARINETTI, 1968c)(4).
Dessa forma, o poema assumia um aspecto contraditório: de um lado, era o ponto de partida da poesia visual ou concreta; de outro, representava a última manifestação da poesia declamada. O aspecto visual e o aspecto
acústico, portanto, coexistiam: a tipografia livre expressiva e as onomatopéias precisavam ser declamadas para se realizarem plenamente. A poliexpressividade, auspiciada no manifesto “A cinematografia futurista”, em 1916 (MARINETTI et al., 1973), já vinha-se concretizando: “Colocaremos em movimento as palavras em liberdade que rompem com os limites da literatura, marchando para a pintura, para a arte dos rumores e lançando uma ponte maravilhosa entre a palavra e o objeto real”(5).
Além de Marinetti, na fase das palavras em liberdade, destacaram-se: Luciano Folgore, com Ponti sull’oceano (1914); Carlo Carrà, o qual, em Guerrapittura (1915) demonstrava a inexistência, em muitos casos, da distinção entre as artes figurativas e a literatura; Auro D’Alba, com Baionette (1915); Corrado Govoni, com Rarefazioni e parole in libertà (1915); Paolo Buzzi, com L’elisse e la spirale (Film + parole in libertà) (1915); Francesco Meriano, com Equatore notturno (1916); Volt (Vincenzo Fani-Ciotti), com Archi voltaici (1916); Armando Mazza, com Firmamento (1920); Francesco Cangiullo com Piedigrotta (1916) e Caffeconcerto (1919), obras eivadas de um grande senso de humor, nas quais o elemento visual predominava; Ardengo Soffici, que, em BIF§ZF + 18 simultaneità e chimismi lirici (1919), oferecia um dos melhores exemplos de tavole parolibere. Nessa obra, a mensagem poética recorria às novas técnicas de comunicação industrial e se exprimia por meio do uso de corpos tipográficos diferentes.
Outros exemplos significativos pertencem à década de 1930, isto é, ao período do segundo Futurismo: Infinito (1933) e Accenti e quote (1935), de Bruno Sanzin; Tavole parolibere (1932), Canti della metropoli verde (1935) e Poesie dei ferri chirurgici (1940), de Pino Masnata. Este último autor inventou o substantivo “de dupla função” – um nome que, colocado entre dois verbos, servia de objeto direto para o primeiro e de sujeito para o segundo – e o adjetivo “bivalente”, assim denominado porque concordava com os dois substantivos entre os quais era colocado (VERDONE, 1986, p. 45). Isso vinha demonstrar que, mesmo depois da fase heróica (1909-1920) (6), ou seja, aquela da vanguarda como descoberta, como renovação, os futuristas continuaram em sua busca experimental.
A fase da aeropoesia, cujas maiores expressões foram o “Manifesto da aeropoesia” (1931) e O aeropoema do golfo de La Spezia (1935)(7), correspondeu à realização literária da aeropintura (surgida em 1929), dominada pela síntese, pelo dinamismo, pela interpenetração, pela simultaneidade e pela nova afirmação do mito da máquina.
A aeropoesia caracterizava-se por uma exacerbação da simultaneidade, sobretudo graças à eliminação da pontuação, à fusão de palavras, ao emprego de adjetivos-atmosfera e de verbos em modos finitos (Presente do Indicativo) ao lado de verbos no infinitivo. O emprego do Presente permitia à lembrança se vivificar, fundindo simultaneamente o presente e o passado na memória do autor. A simultaneidade do presente e do passado, ao anular as distâncias espaciotemporais, correspondia à simultaneidade de visão e à interpenetração propiciada pela velocidade aérea, pelas comunicações via rádio e pelo cinema. Os meios de percepção e de expressão se ampliavam: cores, odores e sons favoreciam uma síntese, às vezes forçada, de realidades distantes. A sintaxe, o discurso, destruídos na fase anterior, ressurgiam de forma muitas vezes retórica, através da exaltação da guerra e da tensão oratória. Os nexos lógicos, antes negados, tornavam a aparecer de forma imprópria, em momentos em que poderiam ter sido eliminados, por já estarem pressupostos. Em suma, entre o parolibrismo e a aeropoesia não havia uma grande diferença: havia algumas variações, às vezes uma redução, um recuo em termos estilísticos.
As palavras em liberdade e, principalmente, os poemas paroliberi, com as analogias desenhadas, a ortografia e a tipografia livre expressiva, representaram uma fragmentação da estrutura lingüística da poesia, mas, ao mesmo tempo, serviram como material de construção de outras experiências literárias. Por exemplo, na Rússia, as obras de Maiakóvski apresentavam muitas afinidades com o Futurismo no campo dos procedimentos formais, embora partindo de concepções ideológicas opostas. Dadaístas e surrealistas (Tzara e
Breton) valer-se-ão da experiência futurista em nível teórico e prático, assimilando imagens, analogias, a sintaxe nominal. Na Itália, foram devedores do Futurismo, dentre outros, Dino Campana, Massimo Bontempelli, Salvatore Quasimodo e, sobretudo, Giuseppe Ungaretti, que chegou a adotar uma declamação futurista (VERDONE, 1986; DE MARIA, 1973, 1986; BRIOSI, 1972; GRISI, 1994; GIMÉNEZ-FRONTIN, 1977).
No Brasil, o diálogo com os futuristas é facilmente detectável em Oswald de Andrade, não só em Poesia pau-brasil (1925), mas também nos romances Memórias sentimentais de João Miramar (1924) e Serafim Ponte Grande (1933), que se caracterizam por rápidos flashes sintéticos (fragmentos), estilo nominal, telegráfico, fluxo de idéias, paródia ou reescrita de autores anteriores (apropriação do olhar do outro). Estará presente, ainda, nas neovanguardas – por via direta ou indireta, através de outras vanguardas históricas – como foi o caso da poesia concreta nos anos 1950. No Plano-piloto para poesia concreta (1958), de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos (2002, p. 204), a contribuição do Futurismo, arrolado como um dos precursores da nova poética brasileira, é mais substancial do que se pode supor à primeira vista. A idéia de ideograma (“método de compor baseado na justaposição direta – analógica, não lógico-discursiva – de elementos”), a “tendência à substantivação e à verbificação”, a “sintaxe puramente relacional baseada exclusivamente na ordem das palavras”, a negação do subjetivismo, a descoberta do “espaço gráfico como agente estrutural”, em oposição ao “desenvolvimento meramente temporístico-linear” da composição, são
evidências de que a poética da matéria, preconizada por Marinetti, continuava a se afirmar mesmo depois de seu momento histórico, comprovando a vitalidade das teorizações e da práxis futuristas.



* - Professora doutora aposentada do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (São Paulo, Brasil).

(1) - Como pondera Annateresa Fabris (1987, p. 51-52), “antecipar o nascimento do Futurismo para 1905, a fim de fazê-lo coincidir com Poesia, [é uma] operação que não pode ser aceita historicamente, pois a enquête sobre o verso livre representava a atualização do público italiano com uma temática já consolidada na França e não uma nova proposta estética como aquela que surgiria alguns anos depois através de meios promocionais em consonância com os instrumentos de divulgação do século XX”.

(2) - A distinção entre versos livres e palavras em liberdade nem sempre é fácil. Por exemplo, Poesie a Beny – uma coletânea de poesias escritas em francês por Marinetti, entre 1920 e 1938, para sua esposa Benedetta – são consideradas composições em versos livres por Luciano De Maria (1973, p. XXXVIII), enquanto Gilberto Finzi (1979, p. 68) encontra, nesses “textos só aparentemente ‘regulares’”, o mesmo poeta das palavras em liberdade.

(3) - Luciano Folgore, em “Lirismo sintético e sensação física” (publicado na revista Lacerba, 1º. jan. 1914), proporá a abolição total do verbo.

(4) - Em sua viagem ao Brasil, em maio de 1926, Marinetti declamou vários poemas, entre os quais O bombardeio de Adrinopla, cuja apresentação surpreendeu o público e foi considerado pela imprensa, “excessivamente cheio de ruídos: marcha de batalhões, clarins, apitos, guinchos, gritos de soldados feridos, estouros de metralha, fuzilaria, resfolegar de motores, fragor de edifícios que se desmoronam...”(FABRIS, 1994, p. 220-222).

(5) - O manifesto era assinado por F. T. Marinetti, Bruno Corra, Emilio Settimelli, Arnaldo Ginna, Giacomo Balla e Remo Chiti.

(6) - Nesse caso, também, a periodização estabelecida por De Maria difere daquela de Verdone, que a prolonga até 1940, e daquela de Falqui, para quem a fase áurea não iria além de 1915-1916 (quando os marinettianos se afastaram do grupo da revista Lacerba).

(7) - Podem ser lembrados ainda: Aeropoema del golfo di Napoli (1937), de Emilio Buccafusca, Idrovolanti in siesta nel golfo di Napoli (1938), de Geppo Tedeschi, Il poema del vestito di latte (1937), Il poema di Torre Viscosa (1938) e Il poema non umano dei tecnicismi (1940), de Marinetti, L’aeropoema futurista della Sardegna, de Gaetano Pattarozzi, L’aeroporto, de Ignazio Scurto, L’aeropoema futurista dell’Umbria, de Franca Maria Corneli, dentre muitos outros. (D’AMBROSIO, 1996; VIAZZI, 1977; PAGLIA, 1977).

Créditos:
TRICEVERSA

Revista do Centro Ítalo-Luso-Brasileiro
de Estudos Lingüísticos e Culturais
ISSN 1981 8432
www.assis.unesp.br/cilbelc
.
TriceVersa, Assis, v.1, n.1, maio-out. 2007

Nenhum comentário:

Postar um comentário